10 de agosto de 2010

Post para um amigo

Paulo Freire defendia a educação transformadora - e mais um monte de outras coisas que eu não vou escrever aqui porque o objeto do post não é o Paulo Freire. Mas é impossível não se lembrar dele ao ter contato com o trabalho do meu amigo Daniel e o Núcleo de Vivência Teatral, da cidade de Iracemápolis (bem pertinho de Limeira).

Depois de uns dois anos de insistência, muitos convites, datas desencontradas e, confesso, uma boa dose de acomodação, finalmente consegui assistir a uma peça do grupo, no último domingo, no encerramento da Mostra Municipal de Teatro de Limeira, no Teatro Vitória, naquela cidade. Como estava em Campinas na casa do sogrão para o Dia dos Pais, não foi difícil dar uma esticada até lá.

A peça é uma adaptação do conto "A hora e vez de Augusto Matraga", de João Guimarães Rosa (aos interessados, o conto jaz nas últimas páginas de "Sagarana", e é altamente recomendado, assim como toda a obra do Guimarães Rosa). A peculiaridade é a seguinte: no Núcleo de Vivência Teatral, os atores são crianças (no máximo, pré-adolescentes). E quem conhece "Matraga" sabe que a história não tem nada de infantil - assim como "Macbeth", montagem anterior do grupo, que agora eu me castigo por ter perdido.

Esses moleques são foda

O Daniel é um grande amigo dos tempos de faculdade, e nas poucas vezes em que temos nos falado ultimamente, ele sempre deixa evidente a alegria que tem com o trabalho no Núcleo. Conta com muito entuasiasmo sobre o talento da meninada, suas realizações e para onde pode ir. Então, admito que tinha uma pulga atrás da orelha sobre o que veria no palco: ao mesmo tempo em que estava com uma certa expectativa para ver logo aquele trabalho, imaginava também que a coisa podia não ser tão legal assim como o Daniel falava, já que ele é naturalmente suspeito para falar de sua cria.

Afinal, "são crianças", pensei; "o teatro é grande e está lotado, deve ser difícil para eles"; "Guimarães Rosa não é tão fácil de digerir."

Ao fim dos primeiros, sei lá, dez minutos de apresentação, meu queixo estava caído, eu estava sinceramente emocionado e me perguntava por que diabos aquilo tudo estava sendo encenado "só" em um teatro de Limeira - com a entrada franca - em uma noite perdida de um agosto qualquer.

Não entendo patavina de teatro, mas posso garantir que vi algo espetacular, impressionante e adjetivamente impossível de classificar. A introdução da peça é cinematográfica e remete a... Irmãos Coen? Não, não... Tarantino? Talvez... A trilha sonora vai de Sepultura a Jacques Morelembaum, passando por Zeca Baleiro; há momentos de humor, drama, tensão, metalinguagem...

Essas meninas também

As crianças... Bem, as crianças são "O" espetáculo. Eu sinceramente fiquei com medo quando um menino apareceu em cena "fumando" um cigarro apagado, ou com as referências indiretas à prostituição, feitas por meninos de... melhor nem chutar a idade. "Caramba, será que tem algum promotor da infância xarope por aqui ou alguém da patrulha dos bons costumes?", pensei. "O Daniel vai sair daqui preso". Pura bobagem, claro - tudo ali estava muito bem encaixado dentro de um contexto, e qualquer débil-mental pode entender isso (crianças que encenam Guimarães Rosa, então...).

Certa vez, acompanhando o blog do Núcleo de Vivência Teatral, li alguém dizendo que, assistindo às peças, a gente até se esquece que são crianças que estão no palco. Eu discordo. Dá pra ver bem que são crianças sim, o tempo todo, mas crianças fazendo algo que delas não se costuma exigir, porque nós, adultos, geralmente achamos que elas não são capazes. Dizer que agem como adultos (como se ser adulto fosse pressuposto básico para fazer qualquer coisa de qualidade) seria desqualificá-las.

No palco, elas fazem coisas que delas não se esperam, ainda mais no teatro. Não estão vestidas de árvore, pedra ou flor, nem voando como Sininho penduradas por cordas, muito menos cantando a 9ª Sinfonia de Beethoven em um coral natalino. Estão falando palavrão, pegando em armas e dizendo frases como "Diabo não existe; existe é homem humano. Travessia" (de "Grande Sertão: Veredas"). Ficar impressionado é inevitável.

Esse aí do meio é o Daniel

Depois de quase duas horas (!) de peça, não podia sentir nada diferente de orgulho, muito orgulho. Orgulho de ser amigo de um grande cara, que parece ter encontrado sua paragem no grande sertão. Alguém que, na república que morávamos em Londrina, passava horas lendo livros cheios de nomes russos e gregos, e discutia comigo onde aquilo tudo iria nos levar (eu só lia jornais e revistas, mesmo).

Depois da peça, lembrávamos desses tempos e das peças que o Daniel apresentava com seus colegas da turma de Artes Cênicas (tinha algumas legais, mas a maioria eu nunca entendi). Ele então disse: "Pois é, o teatro está aí para contar boas histórias, e a gente ficava perdendo tempo naquele monte de intelectualidades." Mais orgulho ainda. Daniel Martins - guardem esse nome, vocês ainda vão ouvir falar dele.

Uma noite memorável. E transformadora.

PS: As fotos foram retiradas do blog do Núcleo de Vivência Teatral. O crédito da segunda foto é de Nelson Shiraga. Das outras, eu não sei.

4 comentários:

Daniel Martins disse...

Sem comentários. Muito obrigado mesmo por ter vindo, cara! Fiquei muito feliz e ainda mais coruja do que já sou com os moleques. Faltava o teu olhar clínico nas nossas apresentações mesmo.

Só senti falta de quando você escolhe alguém do palco, após a apresentação, e define em uma única palavra. O Felipinho é "cool"? A Dani e "rocker"? Diz ae! ahahaha

abraço!

Biajoni disse...

assino embaixo.

Fábio Shiraga disse...

Tudo cabra bão! Tanto os guris do Daniel quanto o Daniel.

Eu tive esta tua sensação de SURPRESA quando vi Macbeth em Iracemápolis. Já com Matraga foi diferente, mas tão bom quanto. Fui no teatro e vi a peça pela segunda vez. Chorei na hora dos aplausos.

Abraço.

Luís Fernando disse...

Pô, eu não sei o nome da jagunçada! E queria evitar fazer comentários individualizados, mas vamos lá: o Quim é blasé sem ser afetado; Joãozinho Bem-Bem é um comediante de stand-up nato com trejeitos circenses (gênio!); Dionóra tem os tais olhos de ressaca imortalizados por outro escritor famoso; a mulher que estava jurada de morte exibe delicadeza e força ao mesmo tempo, com a mesma intensidade. Ah, o Matraga: esse ainda vai ganhar um Oscar.