26 de outubro de 2010

Um indiferente no reino de Melíndria

Era uma vez um reino muito distante chamado Melíndria.

Os melindrosos viviam em paz e harmonia. Todos eram sempre exageradamente gentis e educados, e ninguém andava pelas ruas imune a um "bom dia, como é especial sua existência para todos à nossa volta" ou a um "uau, que bonita sua roupa! Que roupinha mutcho louca!"

A diversão preferida dos melindrosos era gastar horas na Praça do Elogio Mútuo ou no Self-Promotion Shopping Center. Alguns habitantes, habilidosos com essas coisas de novas tecnologias, tinham até blogs, onde podiam expor, sem muito trabalho, seus cotidianos insignificantes e perfeitamente felizes. Eram devidamente reforçados por comentários incentivadores, jamais questionadores, o que dava à sociedade local uma interessante característica de bem-estar ad infinitum.

Como nem tudo é perfeito, e em toda história há um vilão, um belo dia surgiu em Melíndria um forasteiro, perdido, vindo do condado da Indiferência. Sua morada ficava bem longe do principado da Criticânia ou do reino da Acidézia, mas mesmo assim ele não foi muito recebido.

O rei foi vê-lo e saudou-o com um cordial aperto de mão. "Seja bem-vindo, nobre viajante! Aqui será muito bem tratado! Nos diga, já viste terra mais bela como esta?" No que o forasteiro respondeu: "Não sei". O rei estremeceu e soltou sua mão. A princesa pôs-se a chorar e recolheu-se a seus aposentos. O bobo da corte parou de pular. E todos viram que o aquele homem era diferente.

Os dias se seguiram, com os habitantes de Melíndria reagindo ora com indignação ora com profunda mágoa (sentimento que nunca haviam tido antes) diante das atitudes do forasteiro.

Até que o viajante foi fazer uma visita ao ferreiro. Precisava de uma ferradura, iria finalmente partir dali. "Vieste ao lugar certo! Usamos o mais poderoso metal, para fundir a mais brilhante ferradura! Me diga, o que achas?" Em vez de retribuir com um elogio, o que seria força de hábito a qualquer um ali, o forasteiro soltou um "ih, qualquer coisa aí tá bom".

Teve a cabeça cortada pela mais brilhante espada fundida pelo mais poderoso metal.

Melindre descobrira o ódio. E não permitiria mais visitas.

15 de outubro de 2010

A preposição

Eis que um belo dia, no meu trabalho, me deparei com mais uma chamada de capa.

Aquele quadradinho maldito onde as palavras se espremem.

Naquele, especificamente, eu precisava colocar bastante coisa.

O "apertador" de palavras artificial do programa de diagramação não daria jeito.

Aflito, recorri ao menor dos vocábulos, o pai de todos, unanimidade na primeira verbete de qualquer dicionário: ela, a letra "a".

No caso, para desempenhar o papel de preposição (a letra "a" é uma grande atriz, vocês precisam ver): "A repórter do jornal, taxista tentou vender ponto por R$ 120 mil".

Escândalo! Absurdo! Cortem-no a cabeça!

E eu preocupado com o que iriam pensar do editorial...

9 de outubro de 2010

Das coisas que eu odeio

Eu odeio frases que começam com "bom dia pra você que..." no twitter.

Eu odeio frases que começam com "gente que..." no twitter.

Eu odeio, de verdade e com todas as minhas forças, gente que escreve "ri alto" ou "ri litros", no twitter ou em qualquer lugar da face da Terra.

Eu odeio gente que, durante gols em jogos de futebol que passam na Globo, vão lá e tuítam: "gooooool..." ou, como se fosse muito diferente, "puta golaço".

Eu odeio o uso de verbos no imperativo com a terminação "ão": "leião", "vejão", "corrão". Puta merda, é tão difícil escrever corretamente? Eu ainda acho que esse tipo de coisa vai nos tornar uma nação de idiotas mais do que já somos.

Eu odeio quem dá RT em tuítes em inglês. Muito pior se o tuíte foi escrito por um brasileiro. Vai pros EUA ou Inglaterra, bonitão.

Acho que preciso fazer uma faxina na minha timeline.

7 de outubro de 2010

Nick Drake e bolas de capotão

Nick Drake é esse cara aí embaixo.

Infelizmente, o século 21, sob o signo da banalização, criou uma tendência meio besta de definir tudo e qualquer coisa com o adjetivo "gênio".

Bom, esse cara aí é um. De verdade.

Para resumir, Nick Drake foi um puta de um músico fodido da Inglaterra que lançou três discos espetaculares que foram muito mal recebidos pela crítica e público de sua época. Não soube conviver com a frustração e, ainda não se sabe se intencionalmente ou não, morreu por overdose de antidepressivos aos 26 anos, em 1974.

Como naquela velha história de artistas que só são valorizados após sua morte, hoje o Nick Drake vem sendo cada vez mais lembrado e homenageado. Onze a cada dez artistas cool e indies do mundinho contemporâneo o citam como influência (ele deve se revirar no túmulo por isso).

Mas eu não vou me prolongar muito nisso porque o assunto do post é, na realidade, bolas de capotão.

É que ontem eu comprei uma réplica em tamanho reduzido (isso é redundância?) da Jabulani, a famosa bola da Copa. Tirei R$ 13 do bolso e comprei. Assim, pá-pum. E ganhei um bilhete grátis para uma sessão nostalgia.

Quando era criança, podem acreditar, minha brincadeira preferida era jogar bola. Videogame vinha em segundo lugar, e olhe lá. Eu vivia na rua. Até hoje não sei como minha mãe permitia uma barbaridade daquelas. Enfim.

Eu morava com minha família em um bairro meio classe-média baixa na periferia de Presidente Prudente, megalópole no Oeste Paulista, e de fato acho que éramos, digamos assim, um dos mais "ricos" ali da vizinhança. O que quero dizer é que eu meu pai, quando eu precisava, sempre me dava uma bola de futebol - eu tenho quase certeza que, feitas as devidas correções monetárias, elas eram bem mais baratas que a réplica da Jabulani.

As melhores eram as compradas no Bazar Aquariu's, de couro, onde meus olhos brilhavam ao ler termos como "costuradas à mão", "Fifa approved", "9.5 lbs" ou "official size and weight" (vai entender porque alguns termos eram em português e outros em inglês).

Eram as chamadas "bolas de capotão" - uma espécie intermediária entre a Dente de Leite (de borracha, muito leve, que com pouco tempo de uso ficava oval) e as profissionais (extremamente caras, muito duras e pesadas - uma vez ganhei uma da Topper, usada no Brasileirão de 1990, de Natal!).

Quando novas, assim como um sapato, uma calça jeans ou uma namorada, as bolas são bem desconfortáveis. Até você se acostumar, ela faz o pé arder (como o sapato), não se encaixa (como a calça) e é difícil de controlar (como a namorada). Mas quando você menos espera, lá está ela, macia, na textura ideal, pronta para viajar em chutes inacreditáveis, ser milagrosamente defendida por goleiros usando havaianas como luvas e explodir em traves imaginárias em muros de cimento chapiscado.

Com sorte, o relacionamento com uma bola de capotão pode durar bons meses. A "morte natural" de uma bola acontece depois dela perder os gomos de couro (fica só com a parte do tecido exposta), até que a costura abre e expõe a câmara de ar (fenômeno que eu e meus primos carinhosamente chamávamos de "câncer").

Aí, não tem jeito. Ou você encosta a bola e corre pro Bazar Aquariu's ou simplesmente espera a borracha da câmara de ar, pressionada pela costura, encontrar uma pedra ou espinho qualquer que alivie seu sofrimento.

Tragédias também podem acontecer: eu já perdi bolas atropeladas por caminhões (umas três que eu me lembre, pelo menos); furadas na ponta das lanças do portão da minha casa (era uma ótima bola, em processo de amaciamento ainda, até hoje não me perdoo); na torneira do hidrômetro ou para sempre soterradas nos meandros dos esgotos prudentinos (sério mesmo - se bem que eu acho que o cara que disse que era impossível entrar no bueiro entrou lá quando eu já tinha ido embora e ficou com a bola). Teve uma que um moleque roubou no campinho perto da Igreja. Meu pai conhecia o pai dele e o cara foi devolver, cheio de vergonha.




"Life is but a memory
Happened long ago
Theater full of sadness
For a long forgotten show
Seems so easy
Just to let it go on by
'Til you stop and wonder
Why you never wondered why?"

E isso é tudo o que eu tenho a dizer sobre isso.
(A frase é de Forrest Gump, um cara que conheceu muita gente e participou de muitos eventos históricos importantes. No entanto, não consta que ele tenha tido contato com Nick Drake ou jogado uma pelada com bola de capotão)