30 de novembro de 2010

Sujeira

Dia desses aí pra trás, eu fui fazer uma matéria sobre o lançamento de um carro. Nunca tinha feito esse tipo de cobertura antes, mas sabia que esses eventos eram cheios de pompa e circunstância. De vários colegas com quem já trabalhei, cansei de ouvir histórias sobre viagens até para cidades da Europa (teve um que bateu um carrão num test drive em Barcelona). Enfim.

Fui escalado, aceitei o convite e fui, todo serelepe.

O evento foi em Foz do Iguaçu. Saí de Ribeirão Preto em uma segunda-feira à noite, fui de avião até São Paulo. Me hospedaram em um hotel onde a diária custa R$ 315. Ao chegar lá, fui recebido por dois funcionários da montadora que estava lançando o carro. Me ajudaram com o check-in e disseram para eu ficar à vontade para descer e jantar. Assim o fiz. Era um buffet: comi uma saladinha, um macarrãozinho e um peixinho esperto. Tomei uma água. Como já passava das 22h, me controlei para evitar a pedreiragem.

Depois que comi, um funcionário do hotel me pediu para assinar a nota, "só para controle": o jantar havia custado R$ 65. No dia seguinte, de manhãzinha, toca para Foz (a viagem Ribeirão-Foz, com conexão em Guarulhos, sai por R$ 630). Antes, o check-out: como havia consumido uma água no frigobar, mais R$ 4,50 na conta da montadora.

Chegando em Foz, um belo café da manhã nos esperava no aeroporto. Todos os jornalistas (exatamente 27, de todo o País) chegaram mais ou menos no mesmo horário. Uma sala foi reservada para um breve briefing a fim de explicar o que seria todo o evento e, principalmente, o test-drive do carro, que seria dali a pouco.

Saímos do aeroporto e pegamos o carro, em duplas. Tínhamos que chegar ao restaurante em Puerto Iguazu, cidade argentina que faz fronteira com Foz. No meio do caminho, uma parada para a troca de motoristas. Neste ponto, mais comida: empanadas argentinas, medialunas (croissants), bolos, refrigerante, café... Não eram nem 12h e eu já tinha feito quatro refeições: café no hotel em São Paulo, café no avião, café no aeroporto em Foz e "lanche da manhã" em um lugar perdido de uma estrada na Argentina. Que beleza.

Lá pelas 13h30, chegamos no tal restaurante. Tínhamos duas opções de prato principal, carne ou peixe. Escolhi (eu e toda a mesa onde estava sentado) a carne. Um bife de chorizo que devia ter, sei lá, uns 400g. Sendo uns 30% de sangue. Para a sobremesa também eram duas opções: umas tais "frutas selvagens" (nada mais que frutas da mata local, que encontramos em qualquer feira aqui no Brasil) ou o "duo de chocolate" (mousse de chocolate com sorvete de chocolate branco). Adivinhem só qual foi a mais popular.

Não perguntei os preços dos pratos, mas uma consulta rápida em guias da internet me mostrou que um prato lá custa, em média, R$ 30. Mais a entrada, sobremesa e bebidas... Bota aí uns R$ 70 por cabeça.

Aí fomos ao hotel em Puerto Iguazu onde seria a coletiva de imprensa, o jantar e onde dormiríamos naquela noite. A diária? Acho que R$ 390, pesquisando no site não tenho certeza de qual foi o tipo de quarto em que eles me puseram. Mas é no mínimo isso. O hotel é cinco estrelas e fica no meio do mato, a 15 minutos das cataratas. No Brasil, acho que a construção dele teria violado umas 585 leis ambientais.

Na cama, tinha uma camiseta com o logo da montadora e do carro e uma cartinha: "Sua presença é muito importante, blá blá blá, fique à vontade para usar essa camiseta na coletiva e no jantar". Na hora, pensei: "Que ridículo, quem vai usar isso?"

Alguns minutos depois, na coletiva, do grupo de 27 jornalistas, pelo menos metade usava. Sei lá, mas eu achei muito constrangedor. Tudo bem que os caras pagaram tudo pra você estar ali, mas acho que não precisa, literalmente, VESTIR A CAMISA. Né? Sobre isso, falamos mais abaixo.

Na coletiva, cada um ganhou seu bloquinho, sua caneta e um pen-drive (4gb de capacidade total; 300mb utilizados - VOCÊS OUVIRAM ISSO?) com fotos e textos sobre o carro. É o kit "agrada jornalista". Você pode pagar jantar, passagem de avião e hotel cinco estrelas, mas se não tiver bloquinho e caneta...

Bom, aí fomos ao jantar. Tudo muito chique - com exceção, é claro, das camisetas que uniformizavam o salão. Coquetel, entrada, e vinho. Muito vinho. Eu, muito burro, não gravei o rótulo. E, depois de umas três taças, isso não seria possível nem mesmo se eu quisesse.

A entrada era... juro que não lembro. Imperdoável. O prato principal podíamos escolher entre duas opções: lombo ao molho de cerveja preta e purê ou ave enrolada na panceta (não se engane: é o popular medalhão de frango com bacon, só que mais chique) com risoto de amêndoas. Pensando agora eu não sei porquê, mas fui na segunda opção. Estava bom, de qualquer forma. De sobremesa, panqueca de doce de leite ou frutas com sorvete de coco. Fui nas frutas - o sorvete estava espetacular, aliás.

Infelizmente, não faço ideia do quanto custaria individualmente esse jantar. No dia seguinte, depois do café da manhã, estava programado um passeio por um tal de Duty Free Shop - é como um free shop de aeroporto, só que não fica no aeroporto. É bem pequeno, e as coisas não eram muito baratas. Preferia ter ido ver as cataratas. No ônibus que nos levou até lá, tinha uma mochila em cada banco - mais um presente da montadora. O indefectível logo cravado e mais uma cartinha de agradecimento.

Aeroporto de Foz, Guarulhos, Ribeirão. Ufa.

Algumas considerações.

Só comigo, pelo que consegui mais ou menos mensurar, gastaram R$ 2,1 mil). Isso exclui os gastos com o jantar; brindes (bloquinho, camiseta, mochila etc.); transporte de ônibus até o free shop; seguro do carro; gasto com pessoal de apoio (era muita gente) etc.

Junto comigo, foram mais 26 jornalistas. O lançamento foi dividido em três dias; cada um deles com 30 jornalistas, em média. Galera de todo o Brasil, é bom que se diga. Vamos supor que fossem todos de Ribeirão Preto: a montadora teria gasto, no mínimo, R$ 189 mil.

É um cálculo bem inocente, claro. Foi muito mais do que isso, e eu nem consigo imaginar quanto (enquanto estava bêbado, perguntei para a assessora de imprensa quanto tudo havia custado; ela riu e disse: "ih, isso tem que perguntar pro meu chefe". Sei...)

Aí vamos a outra questão: o carro custa cerca de R$ 80 mil. Então, basta vender três unidades que tá mais do que pago. Compensa? Claro que compensa!

Simplesmente porque nenhuma forma de publicidade é mais eficiente do que o jornalismo. Ou alguém acha que tinha alguém lá pra fazer jornalismo? É um acordo tácito, e ninguém fala sobre isso, mas todo mundo sabe: a empresa gasta mundos e fundos para agradar os coleguinhas, que em troca vão falar de seu produto. E não precisa nem falar bem, basta apenas FALAR.

De uma forma ou de outra, o produto estará na mídia, sendo visto, e a não ser que ele tenha uma peça autoexplosiva ou explore o trabalho de crianças cegas e amputadas em sua fabricação, a exposição será sempre positiva.

É muito mais eficiente, por exemplo, que a publicidade "direta" - as propagandas em TV, jornais, revistas e grandes portais. Porque dessa forma a empresa acaba gastando bem mais sem a certeza de que vai atingir e seduzir o público.

Os caras do marketing da montadora sabem disso, o presidente da empresa sabe disso, a assessora de imprensa com sorriso maroto sabe disso. Os leitores, consumidores de notícias, é que não sabem, coitados. E acabam comprando como "jornalismo" o que na verdade é a reprodução amplificada, pelos veículos de comunicação, de peças de divulgação criadas pelas empresas. Cada um à sua maneira, com um filtro aqui e outro ali, mas ainda assim, a mensagem inicial da montadora vai estar ali. Bastante eficiente, e porque não dizer, perspicaz.

Os jornalistas são só marionetes no processo. Alguns sabem dessa condição, e simplesmente topam participar do teatro. OK, dá para respeitar. Mas alguns não fazem ideia do que se passa. E aí eu ouço coisas como "ah, vou falar na minha matéria que o carro já foi lançado na Europa faz dois anos, isso eles não colocam no release!" É isso aí, campeão! Bote a boca no trombone! Mude o mundo! E, de quebra, tente aliviar sua culpa por ter comido, bebido e curtido uma jacuzzi de graça.

Mas não esqueça de tirar a camiseta, por favor. É que de vez em quando suja, e precisa lavar.

22 de novembro de 2010

Maus

Estou longe de ser um fã de quadrinhos. Quer dizer, gosto bastante de quadrinhos, mas na minha infância/adolescência só lia mesmo gibi da Turma da Mônica. Nunca tive saco para ler os super-heróis. Tampouco sei a diferença entre Marvel e DC Comics.

Hoje, minha paixão pelos quadrinhos basicamente se resume aos sites de alguns malucos que publicam suas tirinhas por aí (olha no menu "de passar mal" aí do lado pra vocês terem uma ideia).

Existe uma discussão toda séria sobre a subestimação dos quadrinhos - para alguns que trabalham com essa forma de expressão, eles se enquadrariam em uma categoria própria de arte, assim como o cinema e a literatura. Para esses aí, falar que quadrinho se reume a gibi ou coisa de criança, como prega o senso comum, chega a ser ofensa.

Quando morei em Jundiaí, logo no início de minha estada na cidade, dividi o apartamento com um colega que tinha alguns quadrinhos diferentes, maiores - são as chamadas graphic novels. Como ele não tinha televisão nem computador, esses livros eram o meu único passatempo quando eu chegava do trabalho.

Desde quando comecei a morar lá, notei um livro bem peculiar. O título era "Maus", e ele tinha o desenho de uma suástica na capa. Na hora, pensei: "Ih, deve ser essas coisas de violência. Tô a fim não." Um dia, porém, esgotadas todas as possibilidades de leitura naquela casa, não teve jeito. Fui ao "Maus".

Na primeira noite, parei de ler às 4h da madrugada. E só porque precisava realmente dormir. Na segunda noite, terminei de ler o livro às 3h. Minha vida tinha mudado um pouquinho. Fiquei por um tempo meio que pensando: começo a reler agora ou espero até amanhã?

"Maus" (a palavra não é tradução; significa "ratos" em alemão) é de um cara chamado Art Spiegelman. Ele é judeu. O livro conta a história de sobrevivência dos pais dele na 2ª Guerra pelos campos de concentração nazistas. "Ih, mais uma história de holocausto! Já tô cheio disso! Coisa chata, Luís!" É, eu pensei isso quando li a orelha do livro também.

Mas Spiegelman usa recursos interessantes na sua história: desenha os judeus como ratos, os alemães como gatos, os poloneses como porcos e os americanos como cachorros. E enquanto reproduz os relatos impressionantes e assustadores de seu pai, retrata também os diálogos que tem como ele para a produção do livro, as brigas, a culpa que sente pelo suicídio da mãe.

Dessa forma, logo depois de um quadrinho onde o pai de Spiegelman aparece pisando sobre cadáveres para ir ao banheiro em Auschwitz, vem um onde ele, nos dias atuais, aparece reclamando do preço da caixa de cereais. É irresistível.

Na semana passada, durante uma crise de enxaqueca que me acordou na madrugada, li "Maus" pela terceira vez. Os efeitos do livro são assustadores. É foda demais, não dá pra definir melhor.

Spiegelman, que ganhou um Pulitzer com a obra e hoje é editor da revista New Yorker, já recusou "N" convites para adaptar "Maus" ao cinema e à TV. Melhor assim: que ele continue imortalizado no gibi.

4 de novembro de 2010

O Curupira e o mistério do savacu

Quem me conhece bem sabe desta história: no ensino médio, eu gostava bastante de biologia. Na hora de escolher o curso da faculdade, eu cogitava essa área, mas como era (era?) meio bobão pensava: "o que diabos vou fazer com diploma de biologia? dar aulas? tô fora!"

Eu queria uma profissão "de verdade". E aí caí no jornalismo, o limbo daqueles que gostam de história, geografia e de ler. Hoje, estou aqui. Não posso dizer que me arrependo por completo, mas depois de descobrir que podia desenvolver carreira acadêmica, fazer pesquisas ou trabalhar em ONGs que cuidam de tartarugas marinhas, sempre bate uma ideia de "putz, e se eu tivesse feito biologia..."

Como todo frustrado, tento preencher o espaço aberto pelo sonho não realizado das mais diversas formas. Neste caso específico, a principal delas é assistindo documentários sobre a vida animal. Sério, eu sou alucinado por essas coisas. O ciclo reprodutivo do salmão, a batalha dos pinguins imperadores para criar seus filhotes e a emboscada dos crocodilos na caça aos gnus já se tornaram clichês para mim, mas mesmo assim eu nunca dispenso boas imagens do reino animal.

Dia desses, no Curupira, em Ribeirão Preto, notei um pássaro diferente. Sinceramente, não sei dizer se ele já estava lá antes. Faz bem mais de um ano que eu frequento assiduamente o lugar. Contei seis indivíduos da espécie (posteriormente, descobri que são sete - um é jovem, com a penugem diferente).

Já sabia que o Curupira tinha uma família de quero-queros (que, aliás, está prestes a aumentar) e uma garça branca, além de vários outros pássaros menores. Mas igual aquele eu nunca tinha visto. É cinza, tem os olhos vermelhos e um diferencial inconfundível: uma pena branca, alongada, na cabeça. Seu corpo é compacto, a penugem lisa, e não fosse pelas longas pernas e asas, passaria fácil fácil por um pinguim.


Não contente em atormentar minha curiosidade, um deles começou a me provocar. É aparentemente o maior deles, o macho alfa ou coisa do tipo. Passou a se exibir sobre uma pedra naquele lago maior da parte central do parque, e posso jurar que certa vez me encarou e soltou um grunhido, abafado pelas guitarras do Black Rebel Motorcycle Club no meu fone de ouvido.

Um belo dia, munido de minha imponente máquina fotográfica, resolvi registrar um pouco mais dos hábitos desta intrigante ave. Pela manhã, ela vai nos lagos do Curupira em busca de peixes. E haja paciência. Olha, entra na água, brinca de estátua, voa de uma margem para outra e demora pacas para pegar um singelo peixe. Seus ancestrais devem ser praticantes do zen-budismo. E adoram um sashimi.


Embora tenha uma vasta experiência com documentários, jamais vira aquela ave no Discovery, National Geographic ou Animal Planet. Recorri ao oráculo de nossos tempos: o Google. Digitei "pássaro cinza com pena branca alongada na cabeça", mas não obtive sucesso.

Conheci, no entanto, o site Wiki Aves - acredito que o nome seja autoexplicativo. Mas lá também era impossível encontrar o pássaro, diante de tantas opções e tão poucas informações que eu tinha a respeito de meu objeto de admiração. A solução foi enviar um e-mail para o administrador do site, Reinaldo Guedes. Anexei duas fotos e passei uma descrição básica do bicho.

Alguns dias se passaram, nada de resposta. Animado, cheguei a cogitar que tivesse descoberto, quem sabe?, uma nova espécie. Imaginei o chefe do Wiki Aves abrindo meu e-mail, exclamando um "oh, meu Deus!" e apertando o botão vermelho que aciona a mais alta cúpula zoológica brasileira para uma reunião de urgência. Visualizei a mim mesmo recebendo uma medalha ou coisa que o valha da Sociedade Nacional de Ornitologia.

Não foi o caso. Finalmente, o e-mail foi respondido.

Prezado Luis Fernando,

Trata-se de um savacu:
http://www.wikiaves.com.br/savacu

Atenciosamente,
Reinaldo Guedes


Devo confessar que o tom do e-mail não me agradou: mostra um certo desleixo, como alguém que diz "ora, meu filho, isso é só um savacu! não me encha o saco!" Mas não tive tempo para ficar com raiva. Estava muito feliz por finalmente poder dar um nome ao ponto de interrogação que sobrevoava minha cabeça há tanto tempo.

Eu juro que ali ele acabou de pegar um peixe!

Descobri que o savacu tem hábitos noturnos, também é conhecido por uma série de outros nomes (bem menos trocadilhescos, inclusive) e tem como principal "inimigo" os urubus.

Hoje vou mais tranquilo ao Curupira. Já não tenho aquela ansiedade de antes. Mas sempre que vejo as pessoas caminhando, imersas em seus pensamentos, preocupadas com a conta de luz e o IPVA, preciso me controlar para não cutucá-las e dizer: "ei, sabia que aquilo ali é um savacu?"

A ignorância é a felicidade. É o que dizem.

=====================

Bônus: o Curupira é um lugar estranho. Em que outro ponto da face da terra uma árvore é capaz de atravessar um alambrado? Alguém explica?