5 de novembro de 2009

O menino de Peshawar

Enquanto jornalista, sei que este é um grave defeito meu, mas a verdade é que eu não costumo dar muita bola para fotografias. Deve ter começado na faculdade: minha professora era péssima, o equipamento era sucata e meu interesse pelo assunto, que já era baixo, tornou-se nulo. E, para ser sincero, eu sempre tive um pouco daquele coisa de "jornalista de verdade apura informação, faz texto, não aperta botão". Para mim, em suma, foto sempre foi aquela ilustração que preenche o buraco na página para divertir os olhos do leitor. Pronto-falei.Mas é claro que com o tempo eu mudei essa visão, e hoje realmente sei que uma foto pode dizer o que nem mil páginas de jornal (e não palavras) poderiam descrever.

Bom, o mundo tem uma porção de coisas que eu não entendo, e uma delas é a bagunça toda dessa região chamada Oriente Médio (tomei a liberdade de incluir Afeganistão e Paquistão aí no balaio - nem sei se formalmente eles são considerados Oriente Médio, mas como brigam pacas e são em sua maioria adoradores de Alá, para mim está valendo).

Como leitor, e mais recentemente editor, eu sempre achei completamente banais qualquer informação como "número de mortos em atentado chega a X" ou "carro-bomba explode e mata Y no casa-do-caralho-quistão". Isso, é claro, ocorre em boa parte por culpa das agências internacionais, que no mais das vezes não fazem notícias, e sim atualização do placar de mortos do dia nos locais de conflito. Afinal, explicar tudo certinho dá trabalho, e uma boa quantidade de cadáveres na capa do jornal sempre chama mais a atenção. Contextualização de cu é rola.

O mesmo com as fotos. São sempre ruínas, ferragens de veículos, poeira, um pessoal queimado de sol e barbudo com umas túnicas esquisitas gritando... É tudo horrível, mas vamos admitir, gente: caiu tudo em uma terrível normalidade. Terrível mesmo. Para o leitor/espectador ocidental, que desaprendeu a refletir sobre as raízes do problema; para a imprensa, que repete a mesma fórmula sempre inquestionável de cobertura e, principalmente, para os desafortunados moradores das localidades atingidas, que têm suas vidas reduzidas a estatística e, quando muito, cenário de horror para deleite dos hipócritas de plantão.

Meu pensamento era esse, até que me deparei com a foto abaixo.



Foi na semana retrasada, quando estava editando a página de Mundo do jornal. É de um atentado na cidade de Peshawar, no Paquistão, que aconteceu em um mercado frequentado essencialmente por mulheres - no caso específico deste ataque, um carro-bomba foi explodido no momento em que muitas mães tinham acabado de pegar seus filhos em uma escola próxima e passavam pelo lugar para comprar alimentos para o jantar. A rigor, é mais uma foto da desgraça no Oriente Médio.

Mas para mim a foto pegou. Pegou fundo, de verdade. Pode ser parte do processo de emboiolagem pós-casamento, mas pegou. A criança no colo do pai é uma imagem já forte por si só, mas uma série de detalhes, que fui notando com a contemplação da foto, me derrubou. O principal deles é a sandalinha do menino - coloridinho, bem abotoado, uma sandalinha de criança. Teria sido amarrado por sua mãe? Teria sido comprado por quem? E o pior: cadê o outro pé? Se perdeu com a explosão, e pensar nisso para mim foi bastante aterrorizante. Quem teria coragem de explodir uma bomba perto de uma criança que usa uma sandalinha como essa?

O pai segura seu filho consternado, como se tivesse chegado tarde demais. Eu queria estar lá para dizer a ele que não tinha como chegar mais cedo, que ele não poderia ter feito nada, que aconteceu como tinha que acontecer, que foi um acidente inevitável. As pessoas em volta olham, e o que impera em seus olhares é a expressão de respeito e tristeza, acima da curiosidade.

A legenda que veio com a imagem, da agência France Press (o nome do fotógrafo, aliás, é A. Majeed) começava dizendo "Dead child...". Eu não queria ter lido isso. Nunca desejei tanto que uma informação estivesse errada, e que essa criança estivesse, de alguma forma, viva.

Eu sei que há muitas crianças que morrem por aí, de formas até piores, e vocês podem dizer que eu não reajo com elas assim como reagi com o menino paquistanês. Pois é. Culpem essa foto, feita em algum momento do final da tarde do dia 21 de outubro de 2009 na cidade de Peshawar, no Paquistão.

Dizem que o jornalismo tem o poder de mudar o mundo. Nem que seja um pouquinho, essa foto mudou o meu.

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