Ainda me lembro da primeira vez em que vi a palavra "personagem" no sentido jornalístico. Estranhamente, não foi na faculdade (na verdade, vi muita pouca coisa na faculdade que iria usar depois no dia a dia da redação, mas essa discussão fica pra outra hora).
Eu trabalhava em um jornal da minha cidade, no interior paulista, e lá tínhamos um chefe de reportagem que realmente criava pautas, as redigia, imprimia em uma daquelas impressoras de fita e entregava para os repórteres todas as manhãs. Era uma pauta sobre a greve do INSS, e no final do texto de poucas linhas, estava lá: "COM PERSONÁGEM". Assim, com caps lock e erro de acentuação.
Mal sabia eu que essa desgraça se tornaria o maior pesadelo da minha carreira que ali começava. A busca por um bom personagem é a dificuldade que iguala a classe. Achar um bom personagem é uma tarefa hercúlea, e todos sofrem com ela: os bons, os ruins; estagiários, chefes experientes, fotógrafos e até motoristas solidários pelo nosso sofrimento.
Porque, é claro, não basta dizer que a pesquisa identificou que 84,3% da população feminina entre 25 e 30 anos concebeu mais filhos homens com olhos claros nos primeiros meses de 2010; é preciso achar uma infeliz que se enquadre exatamente neste perfil. "Vamos aproximar o leitor dos números", bradam por aí.
Supondo que você consiga achar alguém, essa pessoa deve querer dar entrevista e, mais do que isso, aceitar sair em uma foto. Com o lindo bebê no colo. Superado esse obstáculo, é bem provável que você ainda ouça do seu editor: "puta merda, não tinha uma moça mais bonita, não? Queria dar essa foto na capa!"
Quem trabalha em redação sabe do que estou falando. Isso é algo que acontece TODOS os dias. Na verdade, na maioria das vezes, mais de uma vez por dia. São situações aparentemente impossíveis que precisam ser resolvidas em um curtíssimo espaço de tempo.
Certa vez, já em outra redação, eu e alguns colegas discutíamos a criação de uma assessoria de imprensa especializada em arrumar personagens: seria um grande "banco", um órgão a quem recorrer em situações de extremo desespero. Mas a ideia logo morreu: quem iria patrocinar o projeto? Afinal, a tal agência não teria "clientes", como uma assessoria de imprensa comum. Jornais, rádios e TV certamente também não moveriam uma palha para investir nisso - há muitas outras preocupações financeiras nas redações...
Bom, mas um cara chamado Gustavo Carneiro (@gustacarneiro) teve a mesma ideia e a levou a um outro nível. No Twitter, ele criou o perfil @ajudeumreporter, e há mais de um ano ajuda jornalistas desesperados e encontrar personagens, fontes para entrevistas, especialistas em qualquer coisa. É bem simples: as requisições a ele são feitas pelo próprio Twitter; ele amplia o pedido para seus seguidores e a rede social faz seu trabalho: afinal, alguém sempre conhece alguém que conhece alguém que conhece alguém...
É um serviço eficiente, mas ainda não é perfeito: dia desses, alguém pediu ajuda para encontrar um frequentador de bibliotecas que ficam sob viadutos. Ãhn... que tal ir até alguma biblioteca que fique sob algum viaduto, queridão? Garanto que você acharia seu personagem facinho. Enfim, o sistema pelo Twitter permite algumas distorções, e a amplitude da coisa às vezes também mais atrapalha que ajuda.
Por isso, o Gustavo quer fazer do serviço um site, onde os pedidos seriam centralizados, avaliados pelos próprios usuários e os e-mails dos repórteres seriam mantidos em sigilo, além de muitos outros benefícios (para assessorias de imprensa e seus malditos follow-ups, inclusive). O tal banco de personagens finalmente existiria. Para isso, no entanto, o Gustavo precisa de R$ 15 mil, que ele está tentando arrecadar pelo sistema de crowdfunding. Você pode doar o quanto quiser, e dependendo do valor pode até receber belos brindes.
Aqui tem todos os detalhes sobre o projeto.
Só tem um problema: o prazo para arrecadação vai até amanhã, sexta-feira, 18 de março de 2011. E até agora o Gustavo conseguiu pouco mais de R$ 3 mil (vale dizer que, se o valor não for alcançado, o dinheiro doado será devolvido). Aliás, "doado" é o termo errado; mais correto seria dizer "investido". É evidente que o sistema funciona, e também é evidente que a criação do site vai melhorá-lo. Se cada seguidor do @ajudeumreporter doasse R$ 1,28, ele sairia do papel. Ou, melhor dizendo, do Twitter.
Enfim, infelizmente, parece que não vai dar certo. O que só mostra como a classe jornalística, a dos formadores de opinião, é esclarecida e unida, não é mesmo?
Vale dizer que eu não conheço o Gustavo, nunca trabalhei com ele ou tive qualquer tipo de contato - a não ser, é claro, pelo Twitter. Mas acho que é uma puta ideia boa, e estou tentando ajudar (além deste post, que poucos vão ler, doei R$ 15). É a forma que acho mais viável para tentar melhorar a vida de jornalistas por aí. Inclusive a minha.
Torço para que dê certo.
17 de março de 2011
11 de março de 2011
Só a morte salva
E aí que estou lendo "Mais Pesado que o Céu", biografia do Kurt Cobain escrita pelo jornalista Charles Cross.
Não cheguei nem na metade e já é possível fechar o caixão (ops!) em relação a uma percepção que já tenho há tempos: para algumas pessoas, a morte é a melhor coisa que pode acontecer.
Não estou dizendo que o Kurt Cobain deveria mesmo morrer para "se salvar". Ou muito menos que a morte seria o mais justo para ele, sujeito que não demonstrava muito apreço pela vida - discurso bem babaca esse, aliás.
O que constato é meio óbvio, mas não deixa de ser um tema delicado pela forma mítica como as pessoas lidam com a perda de outro ser humano: a morte é o caminho mais fácil para se tornar um herói. O que, claro, também é um grande paradoxo - afinal, não há meios de desfrutar das benesses do heroísmo estando morto.
Proponho um exercício mental de vidência.
O que Kurt Cobain estaria fazendo hoje se não tivesse estourado seus miolos em 1994? É bem difícil imaginar, mas uma coisa é certa: ele não seria o mito que é hoje. Dificilmente teria mantido a verve que o moveu nos tempos de Nirvana; talvez não soubesse lidar com a "morte" do grunge; quem sabe não estivesse por aí tentando sobreviver de migalhas do seu passado de sucesso. Pode ser também que ele se tornasse um velho rabugento e decadente, porém digno, mas... vai saber.
Da mesma forma, imaginemos outros ícones eternos que já se foram: Jim Morrison (já imaginou o rei lagarto fazendo show em... Ribeirão Preto?), Janis Joplin, Jimi Hendrix, John Lennon... Sabe lá o que viria desses aí. Mas como já se foram, hoje são todos idolatrados, adorados, exaltados. Em alguns casos de forma exagerada, até.
Agora, vamos pegar o caminho inverso. E os grandes gênios ainda vivos?
Paul McCartney está em plena forma, segue fazendo grandes turnês e é respeitadíssimo por conseguir manter sua coerência artística durante tanto tempo (sendo um ex-beatle até eu, mas essa é outra história). Madonna é outro caso. Está aí firme e forte, com seu público sempre fiel. Mas... ambos vivem às voltas com escândalos, têm suas vidas brutalmente expostas de forma incansável. Tem outros nessa lista aí: Iggy Pop, Stones, U2...
O passar do tempo torna qualquer herói terrivelmente humano. Com a exposição massiva na mídia, então...
O que, é claro, não acontece com os mortos. Quando algum biógrafo ou documentário explosivo escarafuncha a vida de alguma personalidade morta, o efeito é sempre positivo para a pessoa em questão. Se tal persona fez alguma cagada em vida que é finalmente revelada, o erro acaba sempre justificando as atitudes do ídolo, ou, na pior das hipóteses, se tornam base para um lamento tardio: "ah, ele se entupia de drogas e batia na mulher, mas já morreu, tadinho..."
Os exemplos são infinitos.
Pelé: o maior gênio do futebol mundial hoje é conhecido pela alta capacidade de falar merda. Juro que é com certa dose de vergonha alheia que vejo especialistas renomados se referirem a ele como o maior jogador de todos os tempos. Já pensou se ele morresse logo depois da conquista do tri, em 1970? Ou depois de fazer o gol 1000? Minha nossa senhora.
Ayrton Senna? Ícone eterno do esporte brasileiro, mesmo sendo piloto de F-1, que, como todos sabemos, é mesmo modalidade esportiva (esporte?) das mais populares no país, com milhares de praticantes. E se estivesse vivo? Os reflexos de seu gosto indiscriminado por loiras talvez tivesse superado as façanhas na pista...
Sem falar na genialidade do Tim Maia e no senso de inovação e alegria constante dos meninos do Mamonas Assassinas...
A coisa se estende também aos não famosos. Quantos anônimos não emprestam suas mortes para que se tornem exemplos e lições de vida? Menina Isabella, menino João Hélio, menina Eloá...
Nelson Rodrigues certa vez deu um conselho aos jovens: "envelheçam!" Pois eu digo: morram. Às vezes, pode ser uma boa.
Não cheguei nem na metade e já é possível fechar o caixão (ops!) em relação a uma percepção que já tenho há tempos: para algumas pessoas, a morte é a melhor coisa que pode acontecer.
Não estou dizendo que o Kurt Cobain deveria mesmo morrer para "se salvar". Ou muito menos que a morte seria o mais justo para ele, sujeito que não demonstrava muito apreço pela vida - discurso bem babaca esse, aliás.
O que constato é meio óbvio, mas não deixa de ser um tema delicado pela forma mítica como as pessoas lidam com a perda de outro ser humano: a morte é o caminho mais fácil para se tornar um herói. O que, claro, também é um grande paradoxo - afinal, não há meios de desfrutar das benesses do heroísmo estando morto.
Proponho um exercício mental de vidência.
O que Kurt Cobain estaria fazendo hoje se não tivesse estourado seus miolos em 1994? É bem difícil imaginar, mas uma coisa é certa: ele não seria o mito que é hoje. Dificilmente teria mantido a verve que o moveu nos tempos de Nirvana; talvez não soubesse lidar com a "morte" do grunge; quem sabe não estivesse por aí tentando sobreviver de migalhas do seu passado de sucesso. Pode ser também que ele se tornasse um velho rabugento e decadente, porém digno, mas... vai saber.
Da mesma forma, imaginemos outros ícones eternos que já se foram: Jim Morrison (já imaginou o rei lagarto fazendo show em... Ribeirão Preto?), Janis Joplin, Jimi Hendrix, John Lennon... Sabe lá o que viria desses aí. Mas como já se foram, hoje são todos idolatrados, adorados, exaltados. Em alguns casos de forma exagerada, até.
Agora, vamos pegar o caminho inverso. E os grandes gênios ainda vivos?
Paul McCartney está em plena forma, segue fazendo grandes turnês e é respeitadíssimo por conseguir manter sua coerência artística durante tanto tempo (sendo um ex-beatle até eu, mas essa é outra história). Madonna é outro caso. Está aí firme e forte, com seu público sempre fiel. Mas... ambos vivem às voltas com escândalos, têm suas vidas brutalmente expostas de forma incansável. Tem outros nessa lista aí: Iggy Pop, Stones, U2...
O passar do tempo torna qualquer herói terrivelmente humano. Com a exposição massiva na mídia, então...
O que, é claro, não acontece com os mortos. Quando algum biógrafo ou documentário explosivo escarafuncha a vida de alguma personalidade morta, o efeito é sempre positivo para a pessoa em questão. Se tal persona fez alguma cagada em vida que é finalmente revelada, o erro acaba sempre justificando as atitudes do ídolo, ou, na pior das hipóteses, se tornam base para um lamento tardio: "ah, ele se entupia de drogas e batia na mulher, mas já morreu, tadinho..."
Os exemplos são infinitos.
Pelé: o maior gênio do futebol mundial hoje é conhecido pela alta capacidade de falar merda. Juro que é com certa dose de vergonha alheia que vejo especialistas renomados se referirem a ele como o maior jogador de todos os tempos. Já pensou se ele morresse logo depois da conquista do tri, em 1970? Ou depois de fazer o gol 1000? Minha nossa senhora.
Ayrton Senna? Ícone eterno do esporte brasileiro, mesmo sendo piloto de F-1, que, como todos sabemos, é mesmo modalidade esportiva (esporte?) das mais populares no país, com milhares de praticantes. E se estivesse vivo? Os reflexos de seu gosto indiscriminado por loiras talvez tivesse superado as façanhas na pista...
Sem falar na genialidade do Tim Maia e no senso de inovação e alegria constante dos meninos do Mamonas Assassinas...
A coisa se estende também aos não famosos. Quantos anônimos não emprestam suas mortes para que se tornem exemplos e lições de vida? Menina Isabella, menino João Hélio, menina Eloá...
Nelson Rodrigues certa vez deu um conselho aos jovens: "envelheçam!" Pois eu digo: morram. Às vezes, pode ser uma boa.
Entende?
Entendo.
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